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Este projeto é uma pesquisa independente realizada por Werllen Castro com o objetivo de registrar, catalogar e recriar digitalmente os painéis de azulejo projetados por Athos Bulcão, em um exercício de observação e experimentação gráfica para o reconhecimento e valorização do trabalho e legado do artista.

O trabalho de Athos Bulcão em Brasília

Em outubro de 2024 visitei a Coleção de Arte Banco do Brasil no CCBB Brasília. Entre diversas obras modernistas, vi de perto serigrafias de estudos de Athos Bulcão para alguns dos painéis de azulejos mais memoráveis da capital, como o do Centro de Artes da Universidade de Brasília (UnB) e o do Instituto Rio Branco.

Serigrafias de estudos de Athos Bulcão no CCBB Brasília.

O trabalho de Athos Bulcão é desses que vivem em nosso imaginário como brasileiros. Até quem não conhece o artista já se deparou com alguma de suas obras, mesmo que pela televisão. De 1971 até hoje, imagine quantas entrevistas já foram feitas tendo como pano de fundo o famoso painel de azulejos azuis e brancos que decora o Salão Verde da Câmara dos Deputados.

Painel de Athos Bulcão presente no Salão Verde da Câmara dos Deputados. Este trabalho ficou conhecido como “Ventania”, nome dado pelos próprios congressistas.

As criações de Athos Bulcão estão espalhadas não só pelo Brasil, mas também pelos quatro cantos do mundo, sempre em diálogo com a arquitetura dos espaços e edificações. Mas é em Brasília que o trabalho do artista se realiza no cotidiano dos moradores e visitantes, presente em diversos pontos da capital nacional, de prédios públicos e centros de poder político até praças, jardins de infância, escolas e fachadas de blocos comerciais.

Fachada da Escola Classe da SQS 316, em Brasília.

Estar em Brasília é se deparar com o trabalho de Bulcão a todo momento: painéis de azulejos com desenhos geométricos na paleta de cores característica do artista é parte fundamental da identidade da capital, e sua lógica é reproduzida por todos os lados. Neste contexto, alguns painéis originais de Athos Bulcão podem até mesmo passar despercebidos, como por exemplo os painéis das fachadas e sobrelojas dos Blocos C da CLN 303/304, feitos pelo artista em 1987. Foi uma grata surpresa descobrir que existiam painéis tão próximos da SQN 105, onde fiquei hospedado entre os meses de abril e maio de 2025.

Um dos painéis de azulejos do Bloco C da CLN 303/304.

Também nas proximidades, na SQN 107, os painéis de Athos Bulcão fazem parte do dia a dia dos moradores, funcionários e visitantes que passam pelas portarias do Bloco F, Bloco G e Bloco I. Entre os funcionários, uma unanimidade: todos conhecem o artista e sabem da sua presença ali. Alguns, inclusive, compartilharam informações da própria edificação, como detalhes sobre a construção, materiais e estrutura. A presença cotidiana destes elementos arquitetônicos e artísticos na cidade, ao contrário do que possa imaginar, não banaliza a experiência, mas é motivo de orgulho e reconhecimentos para os moradores da capital.

Painéis de azulejos dos Blocos F, G e I da SQN 107.

A Fundação Athos Bulcão tem um importante papel nisso. Fundada em 1992 com o objetivo de manter o legado do artista, a Fundação atua na conservação, pesquisa e difusão do trabalho de Athos. Localizada no Bloco B da CRS 510 da W3 Sul, é também um espaço de exibição do acervo do artista, composto por reproduções, desenhos originais e registros importantes, como uma paleta de cores com tintas esmalte aplicadas diretamente sobre pedaços de cerâmica.

Alguns estudos ao lado da paleta de cores utilizada por Athos Bulcão, no centro da imagem.

O início do processo

A ideia inicial não foi cercada de muitas pretensões. Sou designer gráfico e o uso dos padrões sempre teve uma posição central nas minhas pesquisas. Antes da viagem para Brasília, estive envolvido por semanas em um projeto para a identidade visual do seminário Desnaturada, idealizado por Ailton Krenak. Durante o processo, trabalhei com um padrão simples e de caráter universal como uma forma de fazer referência às culturas ancestrais.

Poster de divulgação para o seminário Desnaturada, utilizando um padrão como elemento gráfico.

Para as animações de divulgação do seminário, utilizei uma linguagem de programação chamada GLSL (Open Shading Language), que já venho estudando há algum tempo. Esse processo serviu, portanto, para que eu pudesse internalizar a lógica de construção de padrões dentro desta linguagem.

Já em Brasília, durante os primeiros dias, tentei um exercício simples: reproduzir a lógica de construção e os desenhos de um sketch feito por um amigo e professor, Mauro Pinheiro. Os desenhos dos blocos lembram alguns trabalhos de Athos Bulcão, como os painéis para da Torre de TV e do Anexo I do Ministério de Relações Exteriores, em Brasília.

Dias depois estive na Igrejinha e no Cine Brasília, onde também vi trabalhos de Athos. Mas o que mais me chamou atenção neste dia foi uma parede de azulejos que decora a entrada do metrô, cuja autoria ainda não consegui identificar. Registrei a parede com algumas fotos e fiz um novo exercício reproduzindo os padrões.

Essas duas experiências iniciais, que tiveram o trabalho de Athos Bulcão como referência, serviram de fundação para as fases seguintes do processo.

A técnica e as primeiras recriações

GLSL não é uma linguagem simples. A lógica central desta linguagem, que se comunica diretamente com a placa de vídeo (GPU), se baseia na ideia de uma única função que é aplicada ao mesmo tempo a todos os pixels da tela. Fazendo uma analogia com outros materiais e técnicas artísticas, seria algo próximo ao processo de gravura, em que há uma espécie de carimbo que registra a imagem sobre uma superfície de forma instantânea. É um processo distinto do desenho, em que as linhas são traçadas sobre a superfície, indo e voltando por diversos pontos do papel, em ações sequenciais e coordenadas. O desenho está mais próximo da maneira como as linguagens baseadas no processamento da CPU se relacionam com a formação de imagens.

Já a lógica do GLSL tem uma natureza mais matemática, e por isso é especialmente complexa como ferramenta de desenho. Para desenhar um círculo no meio da tela, por exemplo, é necessário calcular a distância entre o centro da tela e todos os outros pixels. Quanto mais distante o pixel, maior o seu valor (e vice-versa). Os valores estão normalizados entre 0 e 1, que representam as cores preto e branco, respectivamente. Quando este cálculo é feito, o pixel do centro da tela tem o valor 0 (preto), por representar a menor distância, enquanto os pixels das extremidades possuem valor 1 (branco), pois estão na maior distância possível em relação ao centro. O resultado é um gradiente do preto ao branco, indo do centro às extremidades da tela. É um processo muito mais complexo do que desenhar um círculo definindo as suas coordenadas na tela e o tamanho do raio.

Visualização para o desenho de um círculo através do cálculo da distância entre cada módulo e o centro da imagem.

Então, o que motivaria alguém com uma base matemática de segundo grau e já parcialmente esquecida a se meter com algo assim? Primeiro, a qualidade performática do GLSL: o processamento da imagem pela GPU é infinitamente mais rápida do que pela CPU. É possível gerar literalmente milhares de azulejos complexos ao mesmo tempo, sem que isso represente uma queda significativa na perfomance. Mas minha motivação principal, neste caso, está menos relacionada à perfomance e mais ao desafio em si, à vontade de aprender e internalizar a lógica por trás da técnica.

O trabalho de Athos Bulcão surge neste contexto, então, como uma forma de aprender o bê-a-bá das formas geométricas básicas e da lógica de composição e distribuição dos padrões. A primeira recriação foi o painel do Instituto Rio Branco, um dos que possui construção mais simples: o desenho é formado apenas por um quarto de círculo e um quadrado, e a distribuição é feita através de rotações randômicas nos ângulos de 90, 180 e 270 graus. Uma das grandes obras de Athos e um ótimo ponto de partida.

Registro da serigrafia original de Trama, usado para o painel do Instituto Rio Branco.

Após este momento, defini uma base simples para o meu processo, que envolvia:

  1. Identificar os locais em que estão presentes trabalhos de Athos Bulcão em Brasília. A galeria virtual e o folder impresso da Fundação Athos Bulcão, junto com um mapa virtual feito pelo grupo Experimenta Brasília, foram de grande ajuda neste processo.
  2. Observar presencialmente e registrar os painéis para consulta posterior, um processo que fiz de forma simples, usando o celular, e nem sempre nas melhores condições: alguns espaços não tinham iluminação suficiente, outros separavam os painéis por grades e não permitiam a entrada sem agendamento prévio com o responsável.
  3. Estudar os desenhos e a lógica de distribuição dos azulejos.
  4. Tentar recriar os padrões buscando a maior aproximação possível.

O trabalho de recriação digital de obras analógicas é uma constante no universo da arte digital, parte pelo desafio de reproduzir uma obra em um meio diferente do original, e parte por servir como base para estudos e aprendizado de novas técnicas. Este processo tornou-se, inclusive, base de um curso chamado Recreating The Past, oferecido pela School for Poetic Computation (SFPC), do artista e programador Zach Lieberman. Entre os ministrantes deste curso está um amigo pessoal, incentivador e uma das minhas maiores referências na área: Murilo Polese.

Alguns percalços

Diferente do que podemos imaginar à primeira vista, os painéis de Athos Bulcão cujos azulejos possuem distribuição e rotação aleatória são exceções. Grande parte deles possui uma composição pré-determinada pelo artista, seja na forma de matrizes fixas que se repetem (como nos painéis da Fiocruz e do Mercado das Flores) ou por seguirem um conjunto de regras definidas.

Um dos desenhos originais de Athos Bulcão para uma sequência de azulejos. Do lado esquerdo, uma instrução clara para que os azulejos não fossem rotacionados para formar um círculo.

O trabalho com algumas regras pré-estabelecidas e condicionadas aos azulejos vizinhos é especialmente complexo em se tratando da programação para a GPU. Diferente de outros métodos em que se utiliza a CPU, o cálculo é efetuado para todos os pixels ao mesmo tempo, fazendo com que a manipulação de pixels ou blocos de pixels vizinhos demande recursos extras, como o uso de dados pré-computados e buffers. Esse detalhe da composição acabou por atrasar o processo em alguns dos painéis que já estavam parcialmente resolvidos.

Já o caso das matrizes fixas é bem mais simples de contornar, o que não significa que o esforço tenha sido menor. O processo de análise para identificar a matriz base é mais complexo em matrizes maiores, como a da Fiocruz. Neste caso, trata-se de uma matriz 8 x 7, e fez-se necessário também definir cada uma das 56 condições de variação, disposição e rotação dos azulejos.

Identificação da matriz base do painel de Athos Bulcão para a Fiocruz, na UnB.

Quanto maior a matriz base, maior é também a ilusão de que se trata de uma composição aleatória. Por esse motivo, a recriação do painel do Sesi Lab tornou-se inviável: neste painel, com aproximadamente 135 metros quadrados, os azulejos são dispostos a partir de um projeto pré-definido pelo artista. Não há um padrão claro de repetição e nem aleatoriedade; toda a composição é condicionada por Athos, como uma matriz única sem repetição.

Painel de Athos Bulcão no Sesi Lab. O projeto foi concebido originalmente para o prédio — que antes sediava o Touring Club — mas só foi efetivamente implantado em 2023, depois da aquisição pelo Sesi e por intermédio da Fundação Athos Bulcão.

Sobre este website

Todas as recriações estão disponíveis em uma lista de reprodução que fiz na plataforma Shadertoy. A plataforma é a mais conhecida entre os artistas de shaders, e é um espaço comunitário onde qualquer um pode apresentar o seu código e receber comentários, dicas e sugestões de outros artistas. Esse ambiente colaborativo é reforçado pela ideia de código aberto, pois também é um espaço onde é possível estudar, modificar e criar trabalhos a partir do código de outros artistas. Foi no Shadertoy que eu pude dar os primeiros passos neste projeto, submetendo as recriações e recebendo feedbacks.

Já no meio do caminho, senti a necessidade de publicar as recriações em um website próprio, com uma interface mais amigável e voltada para potencializar as características dos trabalhos de Athos, permitindo a visualização não só das imagens mas também de informações associadas, como o local, ano e links referentes a cada um dos trabalhos originais. Comecei também a pensar que seria importante escrever sobre o processo, como forma de documentar a pesquisa em andamento e contextualizar as obras.

Considerações finais

Este é um processo que se iniciou de forma despretensiosa, a partir de motivações simples: um exercício de observação, aprendizado técnico e homenagem ao trabalho e legado do artista. Por fim, revelou-se bem mais do que isso, possibilitando encontros e surpresas inesperadas, possíveis apenas com o deslocamento pela cidade e nos momentos em que me deparei frente a frente com cada um dos painéis que visitei. O processo serviu como um guia, um ponteiro em direção a muitas descobertas que fiz sobre a cidade e sobre o trabalho de Athos Bulcão.

A escolha da linguagem GLSL foi, inicialmente, um desafio pessoal. Mais tarde, mostrou-se uma escolha alinhada com a natureza modular, matemática e generativa dos padrões do artista. O meio digital, ainda que distante do suporte cerâmico original, me permitiu explorar caminhos para que a obra de Athos possa ser interpretada em novos contextos.

Agradecimentos

  • À todos porteiros, zeladores e funcionários que me permitiram entrar nos espaços e fazer os registros fotográficos.
  • Aos funcionários e gestores da Fundação Athos Bulcão, em especial à Valéria Cabral, que me recebeu para uma conversa sobre o trabalho do artista e minha pesquisa.
  • Aos artistas e programadores do Shadertoy (em especial ao FabriceNeyret2), que contribuíram com comentários, dicas e sugestões para as recriações na plataforma.
  • À minha companheira Victoria Pianca, que me incentivou e me acompanhou em idas e vindas para encontrar mesmo os painéis mais distantes.
  • Ao meu amigo Murilo Polese, artista, educador e programador dedicado que sempre me incentivou no aprendizado dos códigos aliados à arte.

Sobre o autor do projeto

Fotografia do autor por Victoria Pianca.

Werllen Castro (1984–) é designer gráfico formado pela Universidade Federal do Espírito Santo.

Com mais de 15 anos de carreira, sua trajetória profissional é marcada pela atuação em projetos para editoras, instituições públicas e privadas, e produtores independentes. Desenvolve projetos gráficos para publicações e identidade visual para eventos, filmes e álbuns musicais. Também é membro do coletivo editorial Borda, juntamente com Felipe Gomes.

Pesquisa acessibilidade gráfica para os meios impressos e digitais. Em 2022, desenvolveu um modelo gráfico acessível para os editais da Secretaria de Cultura do Espírito Santo (Secult-ES) e, mais recentemente, o Guia de Comunicação Cidadã (Lab.ges / Seger-ES). É o idealizador da ementa e ministrante do módulo de Design Acessível que compõe o curso de Comunicação Cidadã, que é parte da Trilha de Inovação da Escola de Serviço Público do Espírito Santo (Esesp).

Sobre Athos Bulcão

Athos Bulcão (1918–2008) foi um dos mais importantes artistas plásticos brasileiros, conhecido por sua contribuição fundamental na integração entre arte e arquitetura, especialmente em Brasília. Nascido no Rio de Janeiro, abandonou a medicina para se dedicar às artes, trabalhando como assistente de Cândido Portinari antes de se juntar a Oscar Niemeyer na construção da nova capital brasileira em 1957.

Seu legado em Brasília é marcado pelos icônicos painéis de azulejos, que combinam formas geométricas e cores vibrantes, criando uma linguagem visual única. Essas obras não são apenas decorativas, mas dialogam diretamente com a arquitetura modernista da cidade, tornando-se parte essencial de sua identidade.

Bulcão inovou ao permitir que operários montassem seus painéis com certa liberdade, resultando em obras únicas mesmo com padrões repetidos. Sua arte transcende museus, integrando-se ao cotidiano da cidade, como em escolas, hospitais e espaços públicos.

Athos Bulcão durante o processo de montagem dando instruções aos trabalhadores da construção civil sobre a disposição dos azulejos em um painel (Fonte: IPHAN).

Seu legado permanece vivo através da Fundação Athos Bulcão (Fundathos), inspirando novas gerações a explorar a relação entre arte e urbanismo. Seus azulejos não apenas embelezam Brasília, mas contam a história de uma capital construída com criatividade e ousadia.